MP terá autonomia para investigar, mas com prazos e controle do Judiciário
O Supremo Tribunal Federal (STF) formou maioria para reconhecer como legítima investigação conduzida pelo Ministério Público em casos criminais. O chamado Procedimento Investigatório Criminal (PIC) deverá, no entanto, ser submetido ao acompanhamento do Poder Judiciário e respeitar prazos e parâmetros seguidos pelos inquéritos policiais.
Em voto conjunto, os ministros relatores de três ações sobre o assunto, Gilmar Mendes e Edson Fachin, estabeleceram as condicionantes para o PIC e tiveram seu entendimento seguido pela maioria do colegiado. Segundo apresentado no voto dos ministros, para validar a investigação do MP é necessário comunicar o “juiz competente sobre a instauração e encerramento de procedimento investigatório, com o devido registro e distribuição” do feito.
O tema foi levado à corte em 2003, por meio de uma ação proposta pelo PL, e começou a ser julgado em 2022, quando teve o julgamento interrompido por um pedido de vista. Retomada na última semana, a apreciação do tema continuará na próxima quinta, dia 2 de maio.
Em entrevista à Gazeta de Limeira, o criminalista Philip Antonioli fala sobre a complexidade do tema em discussão no STF e das garantias do cidadão investigado ao devido processo legal.
Especializado em Direito Penal Econômico, Antonioli afirma que “a Constituição e a legislação permitem uma interpretação elástica, na qual é possível entender que o Ministério Público pode, sim, investigar. Porém, dependendo de seu posicionamento ideológico, você pode interpretar de forma diferente”.
Confira:
O que diz a legislação brasileira sobre o poder do Ministério Público de conduzir uma investigação criminal de forma autônoma, sem a participação da polícia judiciária (Civil ou Federal)?
A verdade é que o STF está diante de um tema confuso e contraditório, com nuances perigosas que podem até colocar em risco o devido processo legal e as garantias individuais. A Constituição, em seu artigo 144, parágrafo 4º., dispõe que cabe às polícias Civil e Federal realizar as funções de polícia judiciária e de investigação criminal. Mas aí começam os problemas. Primeiro: não há definição do que é investigação criminal. Segundo: o Ministério Público não precisa do inquérito policial para oferecer a denúncia, ou seja, para iniciar uma ação penal. Um exemplo disso ocorre quando o Ministério Público recebe o processo administrativo da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) sobre eventual ilícito administrativo no mercado financeiro. A CVM envia essa cópia ao MP, e o MP pode ou não pedir a instauração de um inquérito policial. Portanto, pode oferecer a denúncia imediatamente. No limite do limite, o inquérito policial, em que pese ser importantíssimo, não é condição para a propositura da ação penal. Terceiro ponto: o promotor, no bojo da investigação que a polícia faz, ele pode, por meio de despacho, pedir que seja investigado determinado fato ou pessoa. O ponto central do conflito nessa questão está no PIC (Procedimento de Investigatório Criminal), criado pelo Ministério Público.
Como funciona o Procedimento Investigatório Criminal (PIC)?
Os PICs, instaurados de forma autônoma pelo MP, normalmente são sigilosos, não têm prazo para acabar. Aí o Ministério Público segue investigando um fato, uma pessoa, durante o tempo que achar conveniente, e o sujeito investigado muitas vezes nem toma conhecimento disso. Os PICs são instaurados exclusivamente por escolha do Ministério Público, que, portanto, investiga o que quiser, mas sem assumir a obrigação de investigar o universo dos casos. Então, a polícia diz que esse meio termo não vale: ou o MP investiga todos os casos ou segue limitado à prerrogativa que lhe é reconhecida hoje de requerer diligências à polícia no curso da investigação criminal. O fato é que a Constituição e a legislação permitem uma interpretação elástica, na qual é possível entender que o Ministério Público pode, sim, investigar. Porém, dependendo de seu posicionamento ideológico, você pode interpretar de forma diferente. Esta é uma questão absolutamente confusa. Se a obrigatoriedade de investigar é exclusivamente da polícia, então, como consequência disso, o Ministério Público não poderia propor ação penal sem que essa investigação fosse feita. Na prática, o que acontece é que o Ministério Público pode entrar com a ação penal sem a instauração de um inquérito policial. Trata-se de um arcabouço jurídico que não conseguimos harmonizar até hoje – e vamos ver o que o STF consegue estabelecer em meio a esse conjunto de normas confusas. Reconheço que é um desafio enorme para o Supremo enfrentar essa questão. Agora a corte já tem maioria formada no sentido de reconhecer na Jurisprudência esse poder do Ministério Público, e, ao mesmo tempo, estabelecer condicionantes para tentar evitar arbitrariedades no âmbito dos PICs.
Como a decisão do STF sobre a competência do MP para conduzir investigações criminais pode impactar o trabalho das instituições de justiça criminal no Brasil?
A maioria formada até o momento, ao que me parece, descarta uma situação de caos que ocorreria caso o STF não entendesse como legítimo o poder do Ministério Público de conduzir investigação criminal de forma autônoma. Se isso acontecesse, em tese, as milhares de ações penais em tramitação nas quais não houve a instauração de inquérito policial poderiam ser consideradas nulas. Todas as ações penais que têm como fundamento uma investigação realizada exclusivamente pelo Ministério Público, sem a participação da polícia, poderiam ser anuladas, pois seriam consideradas ilegais. Na seara penal, os efeitos de toda norma que beneficiar o réu podem retroagir. Então, se o STF decidisse pela inconstitucionalidade da investigação por parte do MP, significaria reconhecer que houve uma ilegalidade contra os réus. Seria considerar que tudo que foi feito resultou de um abuso de poder, de uma violação do devido processo legal e, portanto, tudo deve ser anulado. Mas a maioria já formada no julgamento descarta essa possibilidade.
Qual é o embasamento jurídico para o Ministério Público conduzir investigações criminais de forma autônoma?
Isso está na Constituição, que não veda explicitamente a investigação conduzida pelo Ministério Público. A Constituição apenas diz que a polícia irá realizar a investigação criminal. Seu artigo 129 dispõe que é competência exclusiva do Ministério Público propor a ação penal, mas não restringe a isso a atuação do MP. Também há previsão relacionada a essa questão no Código de Processo Penal, no qual está posto que o Ministério Público irá requisitar diligências à autoridade policial.
Como a autonomia do Ministério Público para investigar crimes se relaciona com a garantia do devido processo legal e com os direitos individuais dos investigados?
Esse é o ponto que está em discussão: a constitucionalidade, a legalidade da investigação conduzida de forma autônoma pelo Ministério Público por meio dos PICs. Normalmente são investigações sigilosas, sem prazo para começar nem acabar, o que fica a critério do promotor que está à frente do caso. A pessoa desconhece que é alvo de investigação, não tem oportunidade de se defender e muitas vezes vai tomar conhecimento disso somente anos depois. Daí você pode dizer que as investigações da polícia também são sigilosas. Sim, de fato são, mas elas têm prazo para acabar, e, para se estenderem, têm que passar pelo crivo do Judiciário e ter o parecer do Ministério Público. Atualmente, na investigação do MP, não há um prazo para que essa investigação acabe. Outra coisa: a polícia é supervisionada em sua investigação pelo Ministério Público. E o Ministério Público, quem o supervisiona? Com a maioria formada no STF ao longo da semana, a atuação de procuradores e promotores estará condicionada a prazos e parâmetros que submetem o inquérito policial, além da necessária comunicação ao Poder Judiciário acerca da instauração e encerramento dos PICs. Parece-me que a linha de julgamento segue acertada no que diz respeito aos direitos e garantias do cidadão ao devido processo legal.
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