“Precisamos mexer na base para ter uma Limeira sem racismo”
Presidente do Comicin avalia a falta de apoio à cultura preta e outros pontos em que Limeira precisa avançar
Cintia Ferreira
O 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, celebra a resistência do povo e a importância da cultura preta. No entanto, a data traz importantes reflexões sobre passos que ainda necessitam serem dados em busca do combate ao racismo, entre tantas outras pautas fundamentais.
Ewelyng Teodoro é militante e ativista negra, Pós-Graduanda em Educação, Cultura e Relações Étnico Raciais pela Universidade de São Paulo. Como presidente do Conselho Municipal dos Interesses do Cidadão Negro (COMICIN), ela aborda temas relevantes para a população preta de Limeira e as demandas que têm sido buscadas pelo conselho.
“Esperamos que a prefeitura, juntamente com a Câmara de Vereadores, entenda que precisamos mexer na base para ter uma Limeira sem racismo. Precisamos pensar políticas que inclua e desenvolva crianças e jovens negros permitindo o acesso a sociedade. O nosso desejo é que a população negra de Limeira sinta que a cidade também é dela e tenha direito de usufruir”.
Em sua fala na Tribuna, você diz que nosso país não valoriza a cultura preta e periférica. Porque acredita nessa afirmação?
Não se trata de uma crença, trata-se de fatos. Historicamente, a cultura preta é marginalizada. O Hip hop, o funk, a black music, são todas marginalizadas pela sociedade, não cultivadas e não fomentadas. Eventos da comunidade negra sempre são sempre cercados de pouco incentivo, de poucas verbas, de poucos recursos. Não existem políticas públicas para destinar efetivamente verbas para construção de espaços e demais estruturas públicas que possam atender a cultura preta o ano inteiro e não somente no Novembro Negro. Um bom exemplo disso é que nós temos uma turma jovem super engajada, muito boa nas batalhas de rimas, com potencial para participar em outras localidades levando o nome da nossa cidade, e deveria receber todo estímulo possível, mas não recebe. A cultura preta em geral não recebe atenção e cada vez mais vemos os nossos espaços sendo embranquecidos e descaracterizados. O carnaval paulista é um grande exemplo de como nossa cultura está sendo elitizada e embranquecida, escola com suas direções cada vez mais brancas e a cultura preta que sempre fomentou este espaço perdendo cada vez mais forças.
Limeira valoriza essa cultura? Se não, é possível começar a valorizar? Como ?
Infelizmente, não valoriza. As ações são pontuais, em datas específicas, e não têm como foco a valorização da cultura negra. Não existe um fomento e destinação de verbas para os eventos da comunidade negra. Todos os eventos que se desejam fazer é uma enorme luta para conseguir acesso aos recursos públicos para sua viabilização. São necessárias emendas parlamentares ou destinação de verbas de cultura diretamente para a cultura preta e periférica, cumprindo com o que é proposto pelo Estatuto da Igualdade Racial nos artigos 56 e 57. A gente sabe que a cultura tira crianças e jovens de diversos cenários de vulnerabilidade social. É preciso engajar as gerações mais novas, principalmente as mais vulneráveis. Não estou dizendo que nada é feito, estou dizendo que é muito pouco em relação às necessidades vivenciadas pela população negra da cidade. Temos muitas lideranças negras carregando sozinhas suas comunidades com atividades diversas sem qualquer incentivo governamental. O município precisa expandir seu atendimento aos munícipes, abrir o leque, ir para as periferias e chamar estes jovens pretos para serem ouvidos, é necessário elaborar projetos de cultura de fora para dentro, de lá, das comunidades, para dentro das secretarias. Um passo importante para o diálogo e escuta sobre as principais mazelas da população negra é chamar as lideranças negras para pensar junto estas políticas públicas. É um erro pensar que pessoas não negras podem sentar e decidir sobre políticas públicas para a comunidade negra sem trazer-nos à mesa. A pauta é nossa e precisa ser pensada por nós e com nós.
Falta apoio para as iniciativas da comunidade preta?
Falta demais. Falta muito. Falta pensar, falta chamar para o debate, falta construir. Um exemplo dessa falta de apoio, foi o evento realizado no último dia 11/11/2023 no Horto Florestal, deixando evidente a falta de qualquer tipo de apoio e respeito aos munícipes que organizaram e queriam participar dessa atividade. Um coletivo de jovens pretos, periféricos sentaram à mesa, desenharam todo um Festival (From da Hood Fest). Eles planejaram, mandaram Ofício validado pelo Comicin. Pediram uma série de apoios, consultaram comerciantes na cidade. Tentaram de tudo para realizar um grande evento no dia Nacional do Hip Hop. O evento em si foi lindo. Entretanto, os organizadores tiveram problemas atrás de problemas, com chances até de cancelamento das atividades propostas no próprio dia do evento! Falta incentivo público e privado para ações da comunidade negra como um todo. A gente precisa ter acesso à cidade, acesso à cultura, acesso a tudo e sem que isso seja feito de forma efetiva, o município precisa elaborar políticas públicas pensadas para nós, sem esse apoio público nós não avançamos.
A cidade possui projetos de lei para a população negra que ainda precisam sair do papel? Por que?
Possui, possui muitos, infelizmente. Eu posso citar alguns.
A Lei 3310 estabelece o Centro Cultural Zumbi dos Palmares, nossa atual pauta, cobrada inicialmente pelo Grêmio e que não foi atendido é de 2001. O Centro Cultural existia e após uma enchente foi reformado e transformado o espaço em uma escola municipal, sem qualquer respeito à comunidade negra. Agora o Comicin assumiu essa briga e está cobrando que a casa de cultura seja devolvida à Comunidade Negra. Não há como aceitar retrocessos.
Temos também a lei ordinária 4160 de Julho de 2007 que dispõe sobre a pintura de grafite como elemento constitutivo do movimento hip hop limeirense. Cadê o incentivo ao grafite, cadê verbas para realização, cadê a fomentação de uma cultura tão importante? Não tem, não existe. O executivo precisa destinar verbas para estruturar estes projetos e fazer saírem do papel.
Qual a importância da proposta sobre lei de cotas apresentada na Câmara? Comente sobre ele.
Hoje, a lei de cotas do município estabelece a autodeclaração como base para ingresso de pessoas negras em concursos públicos. Ela não é suficiente. O Brasil é um país que tem na sua base o fenótipo como principal forma de discriminação, diferente de outros países. É o meu cabelo, a cor da minha pele, o meu nariz que vai me fazer sofrer diretamente o racismo. E isso precisa ser considerado. Por isso a lei que o Comicin apoiou e ajudou a desenvolver estabelece a banca de heteroidentificação como essencial nesta demanda e não apenas a autodeclaração. Este modelo já é usado em diversas universidades públicas e concursos públicos do país e não permite que pessoas não negras usem seus antepassados para justificar o uso das cotas e tirar vagas de quem realmente precisa. Precisamos corrigir o racismo histórico que permeia os setores públicos, e a banca ajudará neste processo, dando mais oportunidades.
O que é o racismo estrutural?
No dia a dia a gente pensa o racismo como somente aquelas ações pontuais, com aquele impedimento de acessar algum lugar porque é negro, ou porque xingou, porque ofendeu, porque ridicularizou. Todos esses fatos são pontuais.
O racismo estrutural, segundo Silvio de Almeida, é um ato de normalidade, algo normal em nossas ações, que está constituído na sociedade e na sua estrutura. Por isso, segundo o ministro, podemos considerar algo normal, pois está acontecendo no nosso cotidiano, a todo instante.
Isso quer dizer que as estruturas que formaram e ainda formam a sociedade brasileira, estabelece e cria regras, cria suas construções diversas práticas silenciosas que colocam pessoas negras na base da sociedade, impedindo um real acesso a outros espaços sociais, como, por exemplo, universidades, cargos de liderança etc.
Outro exemplo disso é o próprio relatório da Anistia Internacional apresentado no começo deste ano, mostrou o que nós do movimento negro já sabemos, as maiores vítimas de violências domésticas são as mulheres negras, então porque a gente não tem políticas públicas voltadas às mulheres negras para diminuir essas estatísticas? Sabemos desde muito tempo que um jovem negro é assassinado a cada 23 minutos e seguimos sem políticas públicas que diminuam estes dados. Ele é estrutural e ele faz parte da dinâmica que mata, encarcera e exclui pessoas negras da dinâmica social como um todo.
Entre as reivindicações está a Casa da Cultura. O que busca o Comicin?
A Casa de Cultura já é uma lei vigente e que precisa ser respeitada. Queremos a Casa de Cultura de volta. É um direito da população Preta Limeirense.
O Comicin quer um planejamento no que tange às políticas públicas para a população negra. Como disse na Câmara, tratar os desiguais na medida das desigualdades que lhes foram impostas. O que queremos são políticas que nos deem acesso à cidade, saúde, educação, desenvolvimento social e econômico, e o Estado precisa participar e pensar essas políticas, fomentar para que a sociedade como um todo mude o olhar para a população negra. Foram séculos de escravidão e precisamos que essa reparação aconteça. Existem doenças que acometem a população negra e elas precisam ser pensadas; jovens negros saem mais cedo das escolas para trabalhar e ajudar na renda família, precisamos pensar a permanência da juventude negra nas escolas; mulheres negras são as que mais sofrem violência doméstica, precisamos pensar políticas que resguardem suas vidas. Os números saem todo ano no atlas da violência, eles precisam ser usados no momento de se pensar em políticas públicas.
Por que o conselho buscou, na Secretaria de Saúde, a retomada de campanha sobre anemia falciforme?
A campanha já existia e pós pandemia foi cessada. Não procuramos apenas para falar da anemia falciforme, mas foi a primeira ação pensada em conjunto, a retomada.
Procuramos a Secretaria para pensar políticas para a saúde da população negra como um todo. Inclusive teremos uma ação juntamente com a comunidade médica de Limeira pensando um atendimento mais humanizado no que se refere às doenças que acometem mais a população negra e não são pensadas e estudadas.
O que pode ser comemorado neste 20 de novembro?
Nós podemos celebrar a nossa resistência, a nossa vida, a nossa luta, nossa chegada até aqui, e celebrar a vida dos que vieram antes. Celebrar Palmares, Celebrar Lélia, celebrar Elza, celebrar Padre Maurilio, celebrar Galdino. Celebrar a vida dos que lutaram. Mas entre nós.
Para fora dos nossos quilombos nós ainda temos um jovem preto sendo morto a cada 23 minutos neste país. Ainda temos as mulheres negras na base da sociedade, sendo chefes de família e enterrando nossos homens pretos. Fomos os que mais morremos na pandemia de COVID 19. Seguimos sofrendo violências de raça, gênero e classe e sobrevivendo às violências diárias e ao racismo que tomou força nos últimos anos, no esporte, nas escolas, no trabalho. Comemoramos, mas em vigília. Em constante vigília pelos corpos pretos que já tombaram e pelos que não desejamos que tombem mais.
O que mais deseja complementar?
Esta gestão do Comicin veio pautar políticas públicas. O que desejamos é que o Estado comece a se planejar para pensar e planejar políticas para a população negra. E isso precisa ser feito através de dados, de pesquisas sobre a população negra e com a população negra. Nada sobre nós sem nós.
Esperamos que a prefeitura, juntamente com a Câmara de Vereadores, entenda que precisamos mexer na base para ter uma Limeira sem racismo. Precisamos pensar políticas que inclua e desenvolva crianças e jovens negros permitindo o acesso a sociedade.
O nosso desejo é que a população negra de Limeira sinta que a cidade também é dela e tenha direito de usufruir. Ha algum tempo ouvimos de jovens negros que não gostam de estar em atividades no centro porque o centro da cidade é branco e não são bem vistos. Tá errado, a cidade é nossa também e precisamos mostrar isso a todos. Nos enviar para os extremos faz parte das políticas racistas estruturais. E não teremos mais retrocesso. Nenhum passo para trás. Vamos em frente seguindo em marcha pelos nossos direitos.
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