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“Precisamos reformar pontos do Código de Defesa do Consumidor”

O Fato & Versão entrevista Diogenes Mizumukai Rodrigues, advogado com MBA em Gestão Tributária pela USP, é especialista em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas, professor das disciplinas Direito Tributário e Digital na Universidade de Araras e no Instituto Superior de Ciências Aplicadas de Limeira, com larga experiência em eficiência tributário, comércio eletrônico e M&A.
O especialista pontua sobre o e-commerce e como esse e outros avanços tecnológicos demonstram a necessidade de mudanças na legislação. “No âmbito do e-commerce, precisamos reformar com urgência alguns pontos do Código de Defesa do Consumidor. As previsões lá contidas não refletem as relações consumeristas atuais”.

 

 

1 – O que é o e-commerce? E quais os desafios que ele traz aos consumidores?

O e-commerce é a vitrine das lojas na internet, com possibilidade de adquirir produtos por meio de compras online, ou seja, escolher o que quiser, dentro das condições de cada um e sem a necessidade de se deslocar para buscar produtos em lojas físicas. Na prática, significa que a empresa, dona das lojas virtuais, pode comercializar os seus produtos por meio de um site exclusivo ou de outras plataformas digitais de venda, nos quais a empresa disponibiliza seus produtos e/ou serviços aos consumidores.

Há muitas vantagens para os consumidores, entre as quais: facilidade para pesquisar a melhor opção para compra, melhor preço e prazo para entrega. Esses benefícios, porém, trouxeram desafios que precisam ser enfrentados. Com a pulverização de sites e lojas no meio digital, muito se tem questionado acerca da originalidade dos produtos vendidos, pois o combate à pirataria no meio digital é muito mais complexo do que no meio físico, o que tem dificultado ações das autoridades competentes para redução e/ou extinção dessa prática. Outro ponto importante a ser destacado é a quantidade de golpes e fraudes ocorridos nos meios digitais. Reclamações nesse sentido surgem a todo momento, seja pela inexistência do site anunciado ou pela não entrega do produto. Assim, o consumidor deve checar a procedência da loja virtual, verificar informações sobre a sua existência e, principalmente, suspeitar de pagamentos via PIX ou boleto com promessas de grandes descontos.

 

2 – Quais os principais desafios das empresas diante dessa realidade?

As empresas, por sua vez, precisam estar atentas a três pontos importantes: cumprimento das suas obrigações, pois “promessa é dívida”, isto é, as condições e informações sobre o produto ou serviço vendido devem ser cumpridas integralmente. Aqui um destaque importante sobre o comércio digital, em relação ao comércio tradicional (físico): o nível de formalização das condições de venda (detalhamento do produto, prazo de entrega, condições de pagamento etc.) é muito maior do que no meio físico, pois toda a comunicação entre a loja e o consumidor fica documentada.

O segundo ponto importante para a empresa é sobre o meio de pagamento escolhido para suas vendas. Muitas empresas têm reclamado sobre o não recebimento dos valores transacionados via internet, seja pela retenção do valor pelas plataformas de Marketplace, seja pelo chargeback alegado pelo cliente, o que leva a perda da venda/ produto e, logicamente, prejuízos à empresa. Em tradução livre para o português, chargeback significa “reversão de pagamento”, que ocorre quando a transação é contestada pelo titular do cartão de crédito e o valor tem de ser devolvido. Nesse caso, via de regra, o prejuízo fica com o lojista vendedor.

Um terceiro ponto a destacar é que a empresa precisa se adequar às exigências da LGPD – Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709/2018). A quantidade de dados pessoais dos clientes transacionados nos meios digitais é muito maior do que no meio físico, e a empresa precisa estar adequada às exigências legais, principalmente com o dever de sigilo quanto às informações do cliente. O vendedor do mundo virtual precisa seguir regras para a coleta e tratamento desses dados, política de privacidade, uso de cookies, dentre outros itens previstos na lei.

 

3 – Acredita que o Código de Defesa do Consumidor (CDC) esteja apto a versar sobre as atuais relações que ocorrem on-line?

Com toda a certeza não está apto. O Código de Defesa do Consumidor foi legislado e promulgado em 1990. Nessa época sequer existia a internet como a vemos nos dias de hoje, muito menos o e-commerce, que nasceu no início dos anos 2000. Portanto, devido a razões óbvias, as relações jurídicas digitais hoje necessárias não estão refletidas no CDC. Por exemplo: qual a diferença de se comprar um smartphone pela internet ou na loja física? Qual a diferença na compra de um software antivírus para o computador pela internet ou na loja física? Qual a diferença na compra de detergentes e produtos de limpeza pela internet ou na loja física?

Nesses exemplos vamos perceber que teremos pouca ou nenhuma diferença entre o consumo digital ou físico desses produtos. Contudo, a proteção legislativa para o consumidor nessas relações por vezes é desproporcional àquela conferida às empresas, que devem arcar com devoluções imotivadas, perda integral ou parcial do produto, custos na logística reversa, dentre outros.

 

4 – Como avalia nosso sistema atual de legislação quando comparado aos avanços tecnológicos?  

O sistema do Direito Civil adotado no Brasil impôs a necessidade de legislarmos sobre todas as relações existente, vez que, geralmente, precisamos de previsão legal para instituir direitos e obrigações nas relações existentes. Nesse sentido, considerando a velocidade e o avanço da tecnologia em todas as áreas, a nossa legislação não está no mesmo compasso das necessidades tecnológicas e suas relações. Por exemplo, como tratar de direito autoral no ChatGPT, já que o robô capta as informações diretamente da internet? Como o usuário do Chat pode se precaver para evitar infrações legais ao direito autoral ou à prestação verídica das informações ali contidas?

O mesmo se aplica ao e-commerce, segmento para o qual há pouca e esparsa legislação de referência.

 

5- Há avanços que se tornam necessários no sentido de legislação? Se sim, como elas devem ocorrer?

Atualmente, no âmbito do e-commerce, precisamos reformar com urgência alguns pontos do Código de Defesa do Consumidor. As previsões lá contidas não refletem as relações consumeristas atuais. Não podemos ter a possibilidade de arrependimento (art. 49, CDC) indiscriminado para todos os produtos e serviços de forma ampla e sem critérios. Vejamos que a quantidade de informações disponíveis ao consumidor, seja nos canais de vendas online, seja em plataforma streaming, permitem, por vezes e para alguns produtos, experiências maiores e melhores aos consumidores em comparação com o que se tem nas lojas físicas, de modo que a sua aquisição não deveria gozar da prerrogativa de arrependimento de forma indiscriminada. Importante pensarmos que esta disposição é computada no preço final dos produtos, ora custeado pelo consumidor. “Não existe almoço grátis”, ou seja, quem pagará a conta no final sempre será o cliente. Portanto, a revisão necessária do CDC em alguns aspectos teria como objetivo garantir maior segurança jurídica às empresas e, indiretamente, aos consumidores, que teriam maior acesso a diferentes produtos.

Outro aspecto importante a ser verificado é uso de informações e dados dos consumidores. Em que pese a entrada em vigor da LGPD, extremamente relevante para o cenário atual, ainda há pouca regulamentação e fiscalização do tema pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), o que tem permitido abusos nas relações de consumo e nas campanhas de marketing propagadas pelas empresas. Constantemente nos deparamos com anúncios, nas redes sociais e nos sites, de produtos e serviços que mencionamos verbalmente a pessoas próximas ou que procuramos nos sites de busca. E como as empresas sabem que estamos interessados nesse ou naquele produto? Não existe mágica: boa parte desses dados são coletados pelos nossos celulares e computadores e, por vezes, de forma ilegal.

 

6 – No campo da comunicação, diante de tantos avanços tecnológicos, como as leis devem avançar?

Historicamente, a Internet foi concebida para ser um espaço neutro e com ampla liberdade para usuários expressarem sua ideologia, forma de pensar e opiniões. Contudo, com o passar dos anos, tornou-se muito comum nos deparamos com situações de injúria, difamação e calúnia praticadas por alguns usuários. Diante desse contexto, vemos espaço para um avanço legislativo e jurisprudencial a fim de disciplinar tais atitudes na rede. A internet, que surgiu como um espaço do livre pensar e opinar, também se tornou uma terra sem lei, de anonimato e impunidade. Essa prática distorcida fez do universo livre também um espaço de investigação e punição de responsáveis por condutas criminosas.

Sempre que tratamos do uso da comunicação nos meios digitais, verificamos que a materialidade das ações, ou seja, os indícios e provas da conduta, são mais facilmente rastreáveis. As punições para tais condutas só não são maiores devido à limitação de investimentos nas áreas públicas responsáveis.

 

7 – Como avalia a criação do Marco Civil, o que ele representa e o que deve ser mantido neste sentido?

O Marco Civil, chamada Constituição da Internet, foi muito importante para o direito digital no Brasil, pois foi uma legislação pioneira no sentido de imputar a responsabilidade das pessoas que cometerem atos ilícitos na internet e delimitar a responsabilidade dos servidores diante desses ilícitos. Então, quando entrou em vigor, o Marco Civil foi determinante para auxiliar o Judiciário na análise de casos que envolviam atos ilegais em sites brasileiros, pois antes da norma havia uma série de punições às plataformas digitais face à ausência de previsões legais específicas.

O Marco Civil estabeleceu, dentre outras regras gerais, que a Internet no Brasil observará e respeitará o princípio da neutralidade de rede. Assim, todas as informações devem trafegar de maneira isonômica, independentemente de seu conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação. Dessa forma, assegurou ao usuário liberdade de escolha, livre concorrência e liberdade de expressão.

Por essas razões, as futuras alterações legislativas devem ter em conta os importantes avanços obtidos pelo Marco Civil, a fim de preservar os princípios e direitos aplicados nas relações digitais, mantendo a segurança jurídica inclusive para os avanços tecnológicos e investimentos nacionais e estrangeiros no setor.

 

8 – Qual sua análise sobre a LGPD?

Historicamente tão importante quanto o Marco Civil, a LGPD – Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709/2018) foi inspirada na legislação europeia que trata do tema - GDPR (General Data Protection Regulation) – com algumas diferenças, mas com o mesmo objetivo de proteger os dados pessoais das pessoas físicas.

A LGPD abre espaço para uma nova cultura de privacidade e proteção de dados no Brasil. Antes da sua edição, não havia conscientização da sociedade acerca da importância dos dados pessoais e os seus reflexos em direitos fundamentais como liberdade, privacidade e livre desenvolvimento da personalidade da pessoa.

Tido como novo petróleo nos dias atuais, os dados pessoais, antes da LGPD, eram utilizados de forma indiscriminada, usados para manobras comerciais, étnicas, culturais e até políticas. Pior, sem qualquer responsabilidade legal para pessoas que utilizavam dados pessoais de forma indevida.

Assim, a LGPD visa prevenir o vazamento de dados pessoais, garantir que o indivíduo tenha sua intimidade e privacidade preservadas, além de assegurar que os dados pessoais sejam tratados de forma adequada, do ponto de vista moral e ético, sob pena de sanções que vão desde advertências a multas de até R$50 milhões por infração cometida.

Portanto, a LGPD no Brasil é extremamente importante para disciplinar o tratamento dos dados pessoais, inclusive nos meios digitais, ratificando os direitos constitucionais e leis infraconstitucionais dos titulares (pessoas físicas usuárias da internet).

                     

9 - Pontos não perguntados, mas que considera importante destacar no tema?

Diante das lacunas normativas suscitadas, as empresas precisam ajustar as previsões contratuais com os seus clientes, fornecedores e consumidores. Invariavelmente, as adequações passam por alterações contratuais e ajustes operacionais nas empresas, precedidos de diligência jurídica sobre as relações existentes na empresa.

Relevante esclarecer a importância dos contratos diante deste cenário lacônico normativo, pois o contrato disciplinará a relação jurídica entre as partes, agindo de forma preventiva aos problemas acima narrados

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