“As mulheres tiveram que lutar pelo direito de praticar esporte”
A Copa do Mundo Feminina desperta admiração e diálogos sobre a presença feminina no futebol e nos esportes em geral. A professora Larissa Galatti comenta sobre a trajetória histórica e os desafios das meninas e mulheres dentro do futebol. As mulheres que, no Brasil, já foram proibidas de participar de jogos coletivos, por meio de uma lei, tiveram que lutar por esse direito.
Larissa é professora do curso de Ciências do Esporte da Faculdade de Ciências Aplicadas da Unicamp, em Limeira. Atua no Laboratório de Pedagogia do Esporte, incluindo a linha de estudos "Esporte e Mulheres".
Qual maior impacto desta Copa Feminina? O que a difere das outras?
Essa é a maior Copa da História, pois é a primeira vez que 32 equipes disputam e isso traz muitos países estreantes o que mostra o crescimento no futebol de mulheres ao redor do mundo. Também mostra uma competitividade, maior intensidade e qualidade do jogo muito evidente e mostra o quanto o futebol de mulheres tem crescido. Isso é reflexo de imposições da Fifa, exigências de que as federações internacionais ao redor do mundo estimulem, criem ações políticas que façam com que o futebol feminino cresça. E isso mostra a necessidade de políticas para que as coisas mudem, não adianta esperar que naturalmente mulheres tenham mais espaço para fazer esporte. Esse grande volume de pessoas na Copa do Mundo, tanto assistindo quanto jogando, mais atletas e mais países representando mulheres de suas nações, nos mostram a relevância de que também em outras áreas da sociedade existam ações que movimentem e favoreçam com que mulheres entram e permaneçam em suas carreiras, inclusive na esportiva.
A cobertura midiática inédita em 2019, vem crescendo ainda mais. Qual o peso disso?
A cobertura tem crescido bastante. Inclusive o jogo de estreia no Brasil com Panamá, teve a maior audiência no mundo a partir da Caze TV. Vemos também no Brasil que pela primeira vez que a Copa Feminina é transmitida ao vivo em TV aberta, muito embora somente os jogos do Brasil estejam sendo transmitidos, isso sem dúvida, é um avanço e possibilita que parte maior da população tenha acesso aos jogos do Brasil, possa acompanhar e torcer. E a partir do momento podem também se apropriar e entender que o futebol feminino é uma modalidade tão interessante quanto à masculina e com suas particularidades. Historicamente temos uma tendência de comparar o esporte das mulheres com o que é praticado por homens, já que os homens iniciaram antes essa prática. E é um grande equívoco, pois o esporte que as mulheres praticam tem suas características e o que os homens praticam tem as suas próprias. Precisamos aprender a apreciar os dois. A partir do momento que a mídia abre esse acesso, as pessoas vão reconhecendo, compreendendo e aprendendo a apreciar. Por isso, é muito importante esse aumento de cobertura.
Ainda há preconceito em relação às mulheres? Ele tem raízes históricas?
O esporte se desenha como ele é hoje a partir de práticas menos sistematizadas, mas mais concentradas em grupo inglês, por homens, brancos e de uma dada aristocracia, classe social mais favorecida e que tinham tempo livre para fazer jogos e brincar. Eles foram sendo sistematizados e foram criando regras. A partir desse momento, foi possível jogar grupos uns contra os outros e o sistema foi se organizando e o esporte foi se desenvolvendo. Então, no primeiro momento somente os homens participavam do esporte, inclusive na primeira edição dos Jogos Olímpicos, em 1896, na era moderna, as mulheres não participaram. O regulamento proibia.
O mesmo acontece com o esporte de maneira geral, as mulheres nunca deixaram de praticar, mas tiveram que lutar pelo direito de praticar esporte e no futebol de maneira mais intensa aqui no Brasil. Em um outro momento histórico, e 1941 vem uma lei que proíbe que as mulheres pratiquem futebol no país. Isso também valia para outras modalidades coletivas. A justificativa dada era que esse tipo de esporte não era compatível à natureza do corpo feminino. O que é uma mentira, não vemos nenhum impedimento ou prejuízo ao corpo feminino com a prática esportiva. Outra alegação é que poderia prejudicar a maternidade e hoje vemos muitas mães atletas. Mas ocorreu essa justificativa infundada que se sustentou com uma lei. Se havia proibição, primeiro é porque existiam mulheres que jogaram futebol, isso mostra que elas não cederam, mas não havia competição. Isso durou até cerca de 1979 quando a lei cai e o futebol feminino vai ser regulado somente em 1983. Temos um período de por volta de 40 anos em que o futebol era proibido por lei para mulheres, então, no imaginário popular, futebol e mulher não se associam e se a gente parar para pensar isso é muito recente, tem 4 décadas apenas que as proibições caíram. Então, a pessoa ainda tem uma cultura muito enraizada nesse distanciamento entre as mulheres e o futebol, em especial aqui no Brasil, com toda tradição do futebol masculino, e aí a gente tem o preconceito em relação à pratica das meninas e mulheres que ainda é muito forte. Sem dúvida, que essas ações e presença do futebol feminino na mídia é importante e é importante que venha acompanhado dessas informações para que as pessoas entendam porque a gente tem ainda muitos grupos na sociedade com dificuldade de associar mulheres e futebol.
Como mudamos isso?
Informando, divulgando esse cenário e essas questões históricas e sociais. Não é uma questão biológica, a demora no desenvolvimento no futebol de mulheres é uma questão social. E pra gente correr atrás do prejuízo desse tempo todo em que não foi possível competições e desenvolvimento, ações são necessárias. Por exemplo, nas competições de nosso continente, em que a Conmebol organiza nas Américas do Sul, toda equipe que joga competição internacional que tem o time masculino, tem que ter também equipe feminina e isso gerou desenvolvimento importante do futebol entre as mulheres. Embora tenha gerado uma dificuldade nas equipes que só faziam o futebol feminino e não estão conseguindo manter o masculino. Então começamos a ver que é importante cuidar das organizações, clubes e entidades que se preocuparam durante todo esse período com o futebol feminino. Vemos também a necessidades de prefeituras, ONGs, clubes se proponham a fazer turmas mistas, estimulem ou façam turmas de meninas. Muitas vezes as meninas não tiveram oportunidade de brincar com os pés com a boa. Precisamos criar um ambiente seguro que elas são bem-vindas, que elas possam vir e ficar e apreciar a cultura do futebol. E aquelas que tiverem condições e desejarem seguir para o caminho do rendimento, mas principalmente se beneficiar do movimento do futebol.
O Brasil está pleiteando receber a próxima Copa do Mundo de Mulheres e isso seria muito importante como mais uma ação política do desenvolvimento do esporte feminino. Precisamos entender que não é um processo natural, as coisas dificilmente vão mudar se a gente não criar estratégias. E a partir desse conjunto de estratégias, ao receber, acolher o desenvolvimento das meninas e criando espaços de lazer seguros, muitas vezes as mulheres não são bem-vindas nas praças pública para a prática e temos que criar ambientes e horários. E pensando no alto rendimento, inclusive no fomento financeiro para o desenvolvimento dessas equipes, o que começa a acontecer a partir de algumas políticas de indução da própria Federação Internacional de Futebol.
Além das jogadoras, é importante ter mais treinadoras. Como você analisa esses cargos de liderança no esporte?
Fizemos um estudo na FCA/ Unicamp sobre treinadoras atuando na série A no Campeonato Brasileiro Feminino de Futebol e só 17% dos cargos de treinadora tinham mulheres à frente. Então a gente ainda tem uma maioria de homens nos cargos de liderança. Isso gera um subdesenvolvimento de mulheres no esporte e falta de representatividade, ou seja, se não vejo mulheres nesse ambiente, não percebo que eu também posso ser treinadora. E a gente tem visto, que embora, tenha homens muito competentes no cargo, a gente também tem mulheres muito competentes e que nem sempre conseguem alcançar esses cargos. Aí existe uma questão chamada princípio da similaridade, as pessoas tendem a convidar para trabalhar consigo seus similares. Normalmente, quando a gente tem homens em cargos de liderança, temos mais homens acessando os cargos de liderança, por isso a necessidade de diversidade. Quando temos diversidade de lideranças, a gente tende a ter diversidade de pessoas atuando em qualquer segmento e no esporte não é diferente. Além de treinadoras, pensar em gestoras. A seleção brasileira hoje tem gestoras mulheres, como Aline Pellegrino, Ana Lorena Marche, são mulheres à frente do processo, engajadas com essas necessidades. Esses são apenas dois exemplos de mulheres que tem atuado historicamente para que o futebol de mulheres tenha sobrevivido e esteja hoje se desenvolvendo.
Ainda tem muita gente que não leva o esporte feminino a sério?
As jogadoras ao longo de décadas tem sido resistência, tem mantido o futebol de mulheres vivo. A Marta sem dúvida e um expoente, vale lembrar que é a jogadora com mais aparições em Copas do Mundo, é uma artilheira na história das Copas e chega nesta com 17 gols e o mundo torce para que ela tenha a conquista de uma Copa do Mundo em possivelmente em sua última participação, então há um desejo coletivo para que sua trajetória, sua história seja premiada com esse título. Um título que não seria uma vitória só da Marta, mas de todas as mulheres que nas últimas décadas tem lutado para que as mulheres tenham acesso ao futebol. Essa lembrança de quem passou na frente, abriu os caminhos, fez histórias é muito importante. Então convido as leitoras e leitores a conhecerem mais sobre as pioneiras do futebol feminino do Brasil.
Algo que não foi perguntado, mas que considera importante reforçar?
É importante que as famílias incentivem as crianças, tanto meninos e meninas, a brincarem de bola de diferentes maneiras. Isso é muito saudável e nos facilita escolher vivenciar o esporte, o futebol, oferecer para as meninas do mesmo jeito que oferece para os meninos. E, assim, permitir que elas conheçam esse elemento tão forte da nossa cultura que é o futebol. E o poder público da cidade que possa também pensar em escolinhas para as meninas explorarem e aprender o futebol, ter uma campanha neste sentido. Que a cidades possa se envolver nesse movimento de mudar esse cenário e favorecer que meninas e mulheres entram e permaneçam no futebol e no esporte de maneira geral, em diferentes formas, sejam como rendimento e profissão, seja como lazer, outros cargos como treinadoras dirigentes e jornalistas esportivas.
Comentários
Compartilhe esta notícia
Faça login para participar dos comentários
Fazer Login