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  ‘A internet é sedutora e nossas crianças e jovens são os mais afetados’

 

 

Especialista avalia que o que acontece no mundo online impacta no mundo físico e pontua papel da escola e família

 

 

Qual o papel da família e da escola diante de tantos estímulos que as novas tecnologias oferecem a crianças e jovens? Para o psicólogo e educador, Rafael Falco Pereira, tudo que acontece no mundo online tem impacto direto no físico e é importante a orientação adequada, o olhar cuidadoso e o acompanhamento dos responsáveis. Rafael atua no Colégio Jandyra, instituição de Limeira.

“A internet é sedutora, e nossas crianças e jovens são os mais afetados porque ainda não possuem um cérebro desenvolvido para filtrar 100% da informação e impor um limite saudável ao uso”, comenta.

 

 

1 – O uso de novas tecnologias hoje é irreversível. No entanto, o que separa o bom uso do uso inadequado desses instrumentos?

O mundo foi inundado pelas tecnologias e não há mais como fugir ou voltar atrás, as tecnologias chegaram para ficar. Enquanto o mundo já fala sobre inteligência artificial, machine learning, big data, entre outros, as pessoas ainda lutam para entender o mínimo sobre os principais riscos e a importância do uso ético e responsável.

Atualmente nota-se o crescente número de crianças e adolescentes que desde muito cedo começam a utilizar aparelhos tecnológicos tais como celulares, tablets, computadores, dentre outros com acesso a internet.

Isso deve ter um olhar muito cuidadoso por parte dos responsáveis, pois o uso indiscriminado, pode gerar consequências em várias dimensões: declínio no desempenho escolar, desinteresse pelo ambiente social, declínio do interesse por atividades na vida real, agressividade e nervosismo e inclusive causar dependência. Além disso, a não monitoria do conteúdo que está sendo vislumbrado pela criança/adolescente, pode gerar exposição a conteúdos inapropriados, e até mesmo a pessoas estranhas, que podem pôr em risco a sua integridade.

Faz-se necessário o estabelecimento de limites, o acompanhamento por parte dos responsáveis, o incentivo a brincadeiras e outras atividades que proporcionem o bem-estar físico e emocional, bem como a organização de uma rotina adequada a cada criança/adolescente que não envolvam somente atividades virtuais. Nota-se que os adultos responsáveis, muitas vezes, acabam sendo permissivos e coniventes com tais ações, com a desculpa de que somente assim “a criança/ adolescente ficará quieta”. Uma criança necessita de tempo e espaço para vivenciar sua infância, o que, em alguns momentos, vai gerar desconforto nos adultos. É bem possível que haverá brinquedos espalhados pela casa, correria, alguma sujeira e até mesmo coisas quebradas. Mas o desenvolvimento e a aprendizagem de uma criança, muitas vezes, se dará pelo sentir e tocar as coisas ao seu redor, por isso em alguns momentos é necessário deixar a criança experienciar o mundo, desenvolver sua criatividade, e isso não é possível com ela “quietinha” em seu lugar.

 

2 – Qual a principal orientação aos jovens e crianças para um uso saudável dos celulares, tablets e até mesmo aplicativos de redes sociais?

A tecnologia é um estimulante na sua essência, assim como a cafeína, as anfetaminas ou a cocaína. Isso mesmo, o uso do dispositivo de tela eletrônica coloca o corpo em um estado de alta excitação e hiperfoco. A superestimulação do sistema nervoso é capaz de causar uma variedade de problemas para o corpo e para o cérebro:

- o uso excessivo perturba o sono e o relógio do corpo: como a luz desses dispositivos de tela imita o dia, ela suprime a melatonina, um sinal de sono produzido pela escuridão. Apenas minutos de estimulação à noite pode atrasar a liberação de melatonina por várias horas e dessincronizar o relógio do corpo. Uma vez que o relógio do corpo é interrompido, vários tipos de outras reações maléficas ocorrem, tais como desequilíbrio hormonal e inflamação no cérebro.

- o tempo de tela dessensibiliza o sistema de recompensa do cérebro: um número cada vez maior de crianças é “viciada” em eletrônica e em versões de jogos. O uso dessas tecnologias libera muita dopamina, que é um neurotransmissor do “sentir-se bem”, que, no cérebro, parece o mesmo que o uso da cocaína. Mas quando essas vias de recompensa são usadas em excesso, tornam-se menos sensíveis, e mais e mais estímulo é necessário para sentir prazer.

- o tempo de tela sobrecarrega o sistema sensorial e esgota as reservas mentais: a exaustão das nossas reservas mentais está relacionada diretamente com a perda da capacidade de foco e atenção, incapacidade de interpretar o ambiente interno e externo e, consequentemente, nos torna mais irritados e propensos a explosões e discussões.

Portanto, sabemos o quanto esses dispositivos trazem mais praticidade no dia a dia, mas é necessário lembrar que a exposição prolongada pode fazer muito mal para a saúde física e mental.

 

3 – Quando esse uso pode ser entendido como perigoso? Que conselhos dá a esses alunos?

A internet é sedutora, e nossas crianças e jovens são os mais afetados porque ainda não possuem um cérebro desenvolvido para filtrar 100% da informação e impor um limite saudável ao uso. Os efeitos do excesso no uso de tecnologias podem ser silenciosos e facilmente confundidos com doenças típicas do mundo moderno.

De acordo com a Safenet, empresa mundial de segurança de informação, para saber reconhecer o limite do uso da internet, é preciso estar atento a quatro características importantes:

- Usa muito tempo seguido, deixando de dormir mais para ficar conectado até tarde da noite;

- Não consegue controlar o uso, pensando apenas em continuar conectado e, quando não está, só pensa na hora em que vai poder usar;

- Esse uso se torna repetitivo, apesar de parecer prazeroso; você é capaz de ficar horas e horas, por exemplo, num mesmo jogo, dias seguidos fazendo a mesma coisa. Seu uso fica pouco criativo;

- Coloca tudo de lado para estar conectado ou jogando, deixando amigos e outras atividades sempre para depois.

 

4 – Como os pais podem acompanhar esse uso? Quais as orientações às famílias?

Muitos pais sentem intuitivamente que o uso em excesso de tecnologias causa efeitos indesejados no comportamento e no humor de seus filhos, mas não sabem ao certo o que fazer sobre isso.

A infância e a adolescência são fases de muita curiosidade. Para os pais, estas fases podem ser bastante árduas, mas recuar não é, de forma alguma, a melhor escolha. Muita coisa mudou e o perigo aumentou com a tecnologia.

As famílias precisam estar atentas, por exemplo, aos grupos nas redes sociais que os filhos participam, ao que compartilham e o que comentam. Todos são responsáveis pela vigilância daqueles dos quais somos responsáveis.

Devemos monitorar o uso da tecnologia, explicar sobre o seu uso responsável e seguro e, sobretudo, impor limites. Sendo assim, estabelecer uma quantidade máxima de horas de navegação é a principal maneira de evitar excessos e promover uma utilização saudável do meio digital pelas crianças e adolescentes.

Proibir o acesso a meios digitais ou à internet não é o caminho. Para uma relação saudável não só com a tecnologia, mas principalmente entre pais e filhos, é fundamental promover a conscientização sobre o porquê da limitação e orientação de uso.

Assim, é importante mostrar para a criança, por exemplo, que algumas regras de segurança devem ser seguidas para resguardar a ela mesma. Para isso, orientá-la a recorrer ao responsável em casos de acesso a alguma página estranha ou tentativas de contato por parte de desconhecidos por meio da rede.

E lembre-se, o primeiro exemplo vem dos próprios pais. Para o bem de sua saúde e por sua família, evite o uso excessivo de dispositivos móveis, como o celular, principalmente na frente de seus filhos. Caso contrário, ficará mais difícil criar um diálogo honesto sobre o uso das redes sociais.

O avanço da tecnologia não pode ser suspenso, isso todos nós já sabemos. Mas ainda podemos escolher o que deve ser visto e o que queremos compartilhar, não é mesmo? Por isso, ajudar a construir uma relação positiva entre os jovens e as redes sociais é essencial para moldar os adultos que eles se tornarão em breve.  

 

5 – Em tempos de notícias falsas, como crianças e jovens podem se prevenir e buscar apoio?

Os pais e a escola devem assumir o papel de ensiná-los sobre as ferramentas de checagem de informação, através de jogos, debates sobre as consequências das notícias falsas e os prejuízos que elas podem trazer para uma pessoa ou até mesmo para a sociedade no geral e até estudo de casos de pessoas públicas que repercutiram na mídia.

Com isso, educaremos os jovens para a pesquisa, para a visão crítica e para o uso do espaço virtual como ferramenta de acesso à informação de boa qualidade e fonte segura, contribuindo para a saúde mental dos filhos e para a melhoria do processo de aprendizagem.

 

6 –Qual o papel da escola hoje nesse uso?

O desafio para quem está à frente da educação é incorporar as tecnologias como aliadas e não como vilãs e introduzir o conhecimento técnico das tecnologias com a cidadania digital.

A escola precisa ensinar crianças e jovens a fazer escolhas saudáveis quanto ao uso das tecnologias e contribuir também para tornar a internet um lugar melhor, com mais diálogo e respeito à diversidade.

 

7 - Como a escola/ professor pode orientar esses estudantes?

A escola precisa avaliar como, dentro do ambiente escolar, os alunos utilizam as tecnologias e se a distração é uma vilã a ser combatida.

As escolas devem decidir com o corpo docente boas práticas e regras de conduta para o uso das tecnologias digitais durante o período escolar pelos alunos, conscientizando-os sobre o uso correto, não como distração, mas como elemento de aprendizado.

De um lado, a escola precisa preocupar-se com a quantidade. Quanto tempo a criança e o adolescente passam usando as tecnologias e como equilibrar o uso na escola, intercalando com outras atividades que colaborem para a geração de químicas saudáveis para o cérebro e o corpo, como a dopamina, endorfina, entre outras.

Por outro lado, a qualidade. Como esse tempo é utilizado? O que se percebe geralmente é que os jovens se ocupam com tecnologias e não necessariamente constroem a partir dela coisas que são úteis para si e para a sociedade.

 

8 – Fale um pouco sobre o trabalho desenvolvido no colégio. De que maneira buscam apoiar esses alunos no uso das novas tecnologias?

No Colégio Jandyra, um dos componentes curriculares é a educação tecnológica. Nas aulas, além dos estudantes serem expostos aos conhecimentos básicos de informática, programação e robótica, os alunos tem o aprendizado de que na internet não há total segurança e conseguem enxergar na prática como são expostos a diferentes tipos de ameaças e como podem se proteger delas. É uma abordagem exitosa no sentido de desenvolver o pensamento crítico dos estudantes, uma vez que defende uma postura ativa diante das tecnologias e da informação.

Além disso, o Serviço de Orientação Educacional, nos encontros semanais que acontecem na disciplina Projeto de Vida, trabalha com os alunos temas transversais de educação tecnológica que  estimulam a reflexão constante sobre os hábitos digitais dos estudantes e de temas como privacidade, representação e narcisismo nas redes sociais, que afetam a saúde mental de muitas pessoas, não apenas dos jovens.

 

9 – No caso dos jogos via computador ou celulares, como deve ser essa relação família e crianças?

Jogar aciona o sentido do cérebro programado para associar ao perigo. Quando o cérebro primitivo sente o perigo, os mecanismos de sobrevivência instantaneamente começam a oferecer proteção contra danos. A ameaça não tem que ser real, até porque o cérebro não distingue realidade de ficção, por isso só precisa ser um perigo percebido para as sensações acontecerem.

É como quando levamos um susto em um filme de terror. Nossa frequência cardíaca aumenta, nosso estômago embrulha e nossos membros ficam tensos, prontos para reagir. Mesmo que a gente saiba que é apenas um filme, as imagens ameaçadoras produzem uma resposta fisiológica intensa e inegável.

O mecanismo de luta e fuga é importante em várias ocasiões, no entanto, quando acionado em excesso, cria dificuldade para o cérebro e o corpo de se autorregular a um estado calmo, levando a uma experiência de estresse crônico.

Com as crianças, cujos sistemas nervosos ainda estão em desenvolvimento, essa sequência de eventos ocorre muito mais rápido do que para os adultos, e a criança cronicamente estressada logo começa a lutar. Se seu filho está passando por problemas de comportamento, queda de notas, alterações de humor, problemas de socialização ou outras dificuldades crônicas, considere a possibilidade de o sistema nervoso estar sendo submetido ao estresse repentino.

Infelizmente, muitos pais fazem o que jamais deveriam fazer nessas situações: para tentar acalmar a criança, continuam a oferecer eletrônicos, em um ciclo sem fim.

 

10- Algo que não foi questionado, mas que o entrevistado entende como fundamental complementar?

A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) recomenda que o uso de tecnologia digital seja limitado e proporcional às idades e às etapas do desenvolvimento cerebral-mental-cognitivo-psicossocial das crianças e adolescentes:

- até 2 anos: não ter contato;

- de 2 a 5 anos: no máximo 1 hora por dia diante das telas;

- de 6 a 12 anos: no máximo 2 horas por dia;

- a partir dos 13 anos: no máximo 3 horas dia.

Também não podemos deixar de mencionar como o comportamento online ajuda a dar destaque a quem comete crimes e a disseminar atos violentos. A recente onda de ataques que acomete escolas no Brasil é atribuída ao “efeito contágio”, causado pelo compartilhamento de imagens, vídeos ou fotos dos agressores e dos ataques, em grupos de WhatsApp ou outros meios de comunicação. Na era das redes sociais, a disseminação de informações, ou desinformação, é um dos fatores que podem influenciar no aumento de casos.

Dentro deste contexto, a educação tecnológica acaba tendo proeminência. O que acontece no mundo online tem impacto no mundo físico e, quanto mais as escolas e as famílias puderem se debruçar sobre isto, melhor. Devemos nos preparar para tratarmos do assunto com a seriedade que merece.

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