“Casos de abuso de autoridade estão se repetindo”, diz Capez
Procurador de Justiça do Ministério Público explicou sobre abuso de autoridade e relações com a imprensa
A Lei de Abuso de Autoridade, nº 4.898/1965, regulava o direito de representação e o processo de responsabilidade administrativa civil e penal, nos casos de abuso de autoridade. Considerando os tempos atuais, a legislação se tornou obsoleta e teve várias críticas por ser genérica. Com isso, foi editada a lei nº 13.869/2019, em vigor desde 3 de janeiro de 2020.
O procurador de Justiça do Ministério Público, Fernando Capez, explicou ao portal Consultor Jurídico, que a nova legislação trouxe maior responsabilidade aos órgãos de controle no momento da instauração do inquérito civil, penal ou administrativo, ou do oferecimento da ação penal ou de improbidade. Ele disse que a lei revogada, conhecida por sua inutilidade, não previa nenhum tipo penal semelhante.
A lei atual, em seu art. 30, estabelece a seguinte conduta típica: "Dar início ou proceder à persecução penal, civil ou administrativa sem justa causa fundamentada ou contra quem sabe inocente. Pena — detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa".
Em entrevista à Gazeta, Capez explica sobre a relação abuso de autoridade e imprensa, cita exemplos e aborda questões relacionadas à insegurança jurídica.
Fernando Capez é também diretor-executivo do Procon-SP, professor e autor de diversas obras jurídicas.
Um promotor ou outra autoridade pode dar preferência a um determinado órgão de imprensa?
O membro do Ministério Público tem na imprensa um grande aliado. Essa união de promotoria- imprensa tem muita legitimidade força social para ações do Ministério Público sobretudo na luta contra os poderosos. Em alguns casos, essa aliança pressupõe alguns acordos que você vai dar exclusividade para uma determinada rede em troca de apoio. Isso faz parte do jogo e tem dado muito resultado ao Ministério Público. Por outro lado, quando você tem esta aliança é uma aliança que dá enorme poder, pois você tem MP e imprensa, dois dos poderes mais influentes da República. Juntos é uma força quase incontrolável. Aí que se exige, por parte do representante do MP, muita ponderação e equilíbrio.
Como deve ser a atuação do Ministério Público?
Em primeiro lugar, o representante do MP tem que ter uma atuação comprometida com a boa técnica e eficiência. Não adianta fazer uma ação com grande apoio da mídia e ser uma ação criminal ou de improbidade, carente de prova ou de elementos probatórios. Vai ser uma ação que vai criar um grande alarido, um grande escândalo, mas não vai terminar em nada ou vai ficar uma ação interminável, ficando 20 ou 25 anos, ou vai ser julgada improcedente. E o promotor tem que entender que todo processo criminal civil tem começo, meio e fim e é necessário ter uma duração razoável do processo. Então, é muito importante a investigação impessoal, obedecendo as regras do processo penal e do processo civil, dependendo se é improbidade ou crime. E nestas investigações, que obedecem aos procedimentos, elas não devem ser anuladas por provas ilícitas ou por vícios procedimentais.
Então, a primeira coisa é levar a cabo uma investigação ou processo que seja hígida, ou seja, que não seja facilmente anulável porque havendo abuso de autoridade há violação da lei e o processo é anulado. Com processo anulado cria-se uma sensação de frustração social e, ao mesmo tempo, aqueles que deveriam ser responsabilizados acabam se vendo livre.
Segundo, a investigação deve-se produzir provas concretas capazes de subsistirem ao contraditório e à ampla defesa para que o processo tenha procedência até o final. Simplesmente fazer uma investigação ou realizar diligências, que muitas vezes se veem buscas e apreensões intermináveis como ocorrem, isso acaba produzindo um resultado pífio, pois acaba sendo um resultado simplesmente do constrangimento do investigado sem um resultado com proveito efetivo.
Portanto, é uma aliança importante. A preferência episódica de um outro faz parte da negociação estratégica. As ações são importantes, mas ações sem provas estão comprometidas com o fracasso e com a impunidade. Fora isso, é dever do Ministério Público atender todo e qualquer veículo de comunicação que procurá-lo e estar à disposição para dar todas as informações da coletividade
Hoje, há mais casos de abuso de autoridade?
Os casos de abuso e autoridade estão se repetindo, se tornando preocupantes a ponto de o Congresso Nacional ter que fazer uma lei proibindo de forma mais rigorosa o abuso de autoridade. Isso tem preocupado, inclusive os ministérios públicos e a cúpula das instituições e os procuradores-gerais do Brasil porque está faltando uma doutrina estratégica de atuação institucional em que haja uma certa homogeneidade de ações dentro de uma estratégia institucional.
O que ocorre hoje são ações individuais e, muitas vezes, contrastantes umas com as outras. Se por um lado está consagrada a independência funcional e liberdade de convicção, que é um pressuposto básico para o Ministério Público na democracia e sem isso não tem Ministério Público, por outro lado, o princípio da unidade institucional pressupõe uma certa coerência de ações. E estas, muitas vezes, ações que vão se repetindo individuais e, às vezes, abusivas promocionais, acaba prejudicando a instituição e comprometendo suas próprias garantias. Então, é muito importante cautela nas relações.
O senhor já sofreu abuso de autoridade?
Fui vítima de uma investigação fraudada em que as testemunhas foram coagidas. Foi comprovado, inclusive com gravações de áudio da coação, que houve alteração do conteúdo dos depoimentos, tudo com finalidade promocional. Hoje, o Conselho Nacional do Ministério Público instaurou um processo por unanimidade apurando esse abuso de autoridade e tudo porque se se verificou no final que o representante do Ministério Público queria se promover e ficar famoso. Realmente, não posso aceitar isso, eu tenho 34 anos de carreira na instrução, me tornei deputado porque os meus colegas promotores pediram. Como presidente da Assembleia Legislativa aprovei vários projetos que fortaleceram o Ministério Público, inclusive financeiramente, dando a ele a autonomia financeira. Então, não poderia aceitar. Se eu não aceito injustiça com os outros, não poderia acertar comigo. É necessário que haja uma adequada repressão os abusos praticados na investigação porque eles prejudicam sobretudo a sociedade. Levam a um gasto inútil de dinheiro público, superlotam a pauta do Judiciário, criam frustração social e permitem que os verdadeiros responsáveis fiquem impunes ou que até mesmo o responsável não seja punido porque o processo foi anulado.
As pessoas entendem o que é abuso de autoridade?
É como pegar um sujeito e acusá-lo de abuso sexual contra uma criança. A tendência inicial é o lixamento porque é o meio mais rápido e prático de solucionar a questão. Isso aconteceu em 1994 com a escolinha de base na cidade de São Paulo, no bairro da Aclimação. Crianças disseram que o motorista e funcionários abusava sexualmente delas. A escola foi destruída e apedrejada. Os donos foram processados e morreram todos de câncer, nunca mais se recuperaram, ficaram com depressão e se descobriu que as crianças tinham combinado de inventar essa história.
Então, qual é a finalidade das garantias constitucionais e do devido processo legal? É evitar uma injustiça. Uma apuração pode demorar um pouco mais, mas ela tem um caminho seguro e, na dúvida, o acusado deve ser absolvido. Esse é o preço pago pra gente que vive em democracia. Esses atropelos de querer resolver rapidamente as coisas ou simplesmente transformar o processo com pena em si mesmo, submetendo a pessoa a humilhação de uma diligência restritiva, de busca e apreensão ou uma prisão desnecessária, para usar aquilo como a pena final do processo, provoca enorme frustração social porque as pessoas começam a sentir que o processo não dá em nada, que acaba em pizza. E, muitas vezes, não porque o sistema protege, mas porque a investigação foi malfeita ou violou a lei.
E a liberdade de expressão?
Ela deve ser respeitada e é imprescindível que seja regra. Se ninguém pode usar da liberdade de expressão para macular a honra de alguém, para ameaçar uma pessoa. Então, há limites para liberdade de expressão e o limite é a prática do crime. Ele pode ser se manifestar livremente até não cometer um crime.
Uma empresa pode ser prejudicada por acusações infundadas. O senhor atribui isso a questão da insegurança jurídica?
As acusações infundadas levam, em primeiro lugar, a um prejuízo para a credibilidade da Justiça. Quando as pessoas deixam de acreditar na justiça elas passam a buscar soluções pelas próprias mãos ou simplesmente passam a desrespeitar a lei e os outros porque não acreditam mais no sistema. Então, quando se inicia uma investigação sobre um caso importante é fundamental que sejam atendidas todas as garantias constitucionais do investigado. É necessário que se obedeça ao devido processo legal, não para atrasar a investigação ou para proteger o ocupado, mas para dar segurança de que aquela apuração será impessoal, que vai levar a um bom resultado e, sobretudo, o processo não vai ser anulado. É necessário que haja provas suficientes e que sejam obedecidos os parâmetros legais. Com isso, se garante a eficiência da Justiça e a Constituição Federal exige, por parte de qualquer órgão da administração pública, a eficiência, que se tem quando atua com processos com provas e respeito ao devido processo legal.
O país vive um momento de insegurança jurídica?
Com todas as carências que existem no país e todos os problemas, a insegurança jurídica é a principal carência. É mais grave do que a incompetência na administração pública e é mais grave até que a corrupção. A insegurança jurídica provoca uma instabilidade e uma falta de previsibilidade para o desenvolvimento econômico. O incorporador, investidor estrangeiro vem ao Brasil e, de repente, por uma questão absolutamente retórica ou uma polêmica jurídica absolutamente bizantina, começa um debate sobre uma tese erudita, que não tem nenhuma repercussão e importância social e a gente perde investimento e geração de emprego.
Você tem incorporações imobiliárias sendo paralisadas, em razão de discussões de juridiquês ou de questiúnculas de natureza procedimental, que já tinham que ser vistas há muito tempo. A insegurança jurídica impede que haja investimento externo. O Brasil não tem capital para bancar sozinho todo desenvolvimento e as necessidades da população. É necessário atrair empresas estrangeiras para investirem no Brasil e elas não vão investir se não tiver um ambiente de segurança jurídica, se cada juiz tiver uma interpretação diferente da outra, se as questões mais importantes não forem claramente esclarecidas em lei ou sumuladas pelo Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça de maneira para evitar o início de processos desnecessários e investigações em que já sabe que não vai dar em nada, mas que por si só já pode atrapalhar o investimento.
O que é preciso para o país melhorar?
É a necessidade urgente de uma reforma administrativa, acelerando as privatizações nas áreas em que o poder público e estado não precisam estar. O estado não precisa hoje ser dono de empresas particulares, que podem muito bem desenvolver essa mesma atividade privada na mão do capital privado. É necessário que o estado começa a gastar racionalmente os seus recursos nas áreas em que é imprescindível sua atuação, como saúde, educação, justiça, segurança pública. Você não consegue hoje com nível de arrecadação de impostos e aumentar os impostos é quebrar os empresários. O país precisa de menos polêmica e mais respeito. As pessoas precisam se respeitarem mais e não precisam perder tempo discutindo bobagem, como são essas pautas de costume, que deviam ser uma coisa natural e não 100% do tempo da população. Isso que é fundamental para o país.
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