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Quando Luma Fechar os Olhos

Luma está deitada no canto preferido da sala, onde o sol da manhã entra com delicadeza e pinta o chão de dourado. Ela respira devagar, com aquele ritmo que só os que estão cansados da vida conhecem. O veterinário foi claro: não há mais muito o que fazer. E eu, que sempre fui bom em encontrar soluções, me vejo agora impotente diante da única coisa que não posso resolver — o tempo.

Mas antes que ele nos leve, quero contar sobre ela. Sobre nós.

Luma chegou numa manhã de domingo, há quase quatorze anos. Eu estava recém-saído de uma separação dolorosa, morando sozinho pela primeira vez, tentando entender quem eu era sem os rótulos que a vida me deu. Ela apareceu no portão, magra, suja, com um olhar que misturava medo e esperança. Miou uma vez, como quem pede licença. E entrou.

Desde então, nunca mais saímos um do outro.

Ela cresceu entre livros, discos e noites insones. Me viu chorar em silêncio, me viu sorrir com esforço, me viu recomeçar. Quando perdi meu pai, foi Luma quem se deitou no meu peito, ronronando como se quisesse embalar minha dor. Quando perdi o emprego, ela se sentava ao lado do computador, como quem diz: “Vai dar certo.” E dava. Porque com ela ali, tudo parecia menos difícil.

Luma não era só minha gata. Era minha casa. Meu equilíbrio. Meu ponto de retorno.

Ela tinha um jeito curioso de entender os silêncios. Sabia quando eu precisava de espaço e quando eu precisava de colo. Sabia quando a tristeza era funda e quando era só cansaço. E, sem nunca dizer uma palavra, dizia tudo.

Com o tempo, ela também se tornou amiga dos meus amigos, confidente das crianças da vizinhança, companhia dos meus pais nas tardes de domingo. Lembro de uma vez em que minha sobrinha, tímida e retraída, passou horas acariciando Luma, contando segredos que nem a mãe conhecia. Luma ouvia, paciente, como quem guarda o mundo inteiro no coração.

Animais de estimação têm esse dom. Eles não curam nossas feridas, mas nos fazem esquecer que elas doem. São pontes entre o que somos e o que podemos ser. São abrigo, são afeto, são esperança.

Hoje, enquanto olho para ela dormindo, penso em tudo o que vivemos. Nas viagens em que ela se escondia na mala, nos dias em que se deitava sobre meus livros, nas noites em que dormia sobre meu peito. Penso em como ela me ensinou a amar sem esperar nada em troca. A cuidar. A ser presente.

E penso também no que virá.

A despedida será dura. Já está sendo. Cada dia é uma contagem regressiva disfarçada de rotina. Cada miado é um adeus sussurrado. Mas não quero que essa crônica seja triste. Quero que seja um agradecimento.

Porque Luma me deu mais do que companhia. Me deu sentido.

E é isso que os animais fazem. Eles entram em nossas vidas sem pedir permissão e, quando partem, levam um pedaço de nós. Mas deixam outro — maior, mais bonito, mais forte.

Luma será lembrada por mim, pelos meus amigos, pela minha família. Será lembrada pelas crianças que ela ajudou a sorrir, pelos idosos que ela ajudou a se sentir menos sozinhos. Será lembrada como um símbolo de tudo o que é puro e verdadeiro.

E quando ela fechar os olhos pela última vez, eu não vou chorar. Ou talvez chore. Mas também vou sorrir. Porque tive o privilégio de viver com ela. De aprender com ela. De ser melhor por causa dela.

Amanhã, quando o sol entrar pela janela e pintar o chão de dourado, talvez ela não esteja mais ali. Mas eu saberei que, em algum lugar, ela ainda ronrona. E que, dentro de mim, ela nunca vai parar de miar.

 

NOTA: Esta crônica é uma ficção. Eu a dedico a um grande amigo, um dos melhores que a vida me deu porque apesar de sua história ser bem diferente desta que criei, ele está vivendo a dor de se despedir de uma amiga felina.

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